Alexandre Di Miceli
12 min readMar 16, 2020
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Uma agenda para os Conselhos de Administração nos anos 2020

Megatendências do Século XXI e suas 10 implicações para os Conselho de Administração

O mundo vem passando por enormes transformações tecnológicas, ambientais e sociais nessa transição para o Século XXI. Entre essas megatendências, cada uma com impacto colossal sobre as empresas, se destacam:

§ Um mundo cada vez mais transparente, interconectado, instável e imprevisível;

§ A chegada da era das máquinas inteligentes possibilitada pelos avanços da inteligência artificial;

§ A quarta revolução industrial, com a criação de novos modelos de negócios e a fusão dos mundos físico, digital e biológico;

§ O aquecimento global e o horizonte cada vez mais próximo de colapsos ecológicos;

§ O envelhecimento da população e outras mudanças demográficas;

§ A tendência de aumento da desigualdade econômica para níveis sem precedentes;

§ A crescente polarização política e o aumento dos riscos geopolíticos;

§ As expectativas cada vez maiores dos stakeholders sobre o papel das empresas na sociedade;

§ O maior ativismo dos investidores, com pressões tanto para resultados financeiros de curto prazo quanto para melhores padrões ESG (ambientais, sociais e de governança) de longo prazo;

§ O surgimento de um novo Zeitgeist,[1] principalmente nas novas gerações, caracterizado por maior consciência socioambiental, ênfase em experiências em vez de rotinas e um conceito de sucesso mais relacionado à qualidade de vida do que a conquistas materiais.

Conjunto de megatendências que impactam as empresas na transição para o Século XXI.

A cada dia, essas mudanças estruturais vêm redefinindo como as organizações operam e criam valor. Para navegar em águas tão turbulentas e imprevisíveis, muitas empresas precisarão de uma ampla reformulação na mentalidade de suas lideranças e no modus operandi de sua alta gestão.

O conselho de administração possui um papel-chave na adaptação das empresas aos novos tempos, uma vez que sua missão é assegurar a sustentabilidade e o sucesso de longo prazo da organização. Em particular, existem 10 implicações principais das transformações em curso sobre o papel, funcionamento, cultura e composição dos conselhos:

Papel do Conselho de Administração

Implicação # 1: Mais foco no futuro, menos no passado

Os conselhos devem passar a gastar muito mais tempo discutindo questões estratégicas voltadas ao futuro da organização do que temas operacionais do dia a dia ou passado recente, como o tradicional “orçado vs. realizado”.

Apesar de cada organização ter sua especificidade, uma boa meta seria alocar ao menos 70% do tempo das reuniões para temas relacionados aos riscos e direcionamentos futuros da empresa. Este objetivo não é fácil de ser alcançado, uma vez que muitos conselhos tendem a dedicar seu tempo a inúmeros controles, questões procedurais e de monitoramento da gestão. Em trabalhos que realizamos com companhias brasileiras de grande porte recentemente, por exemplo, constatamos que, em média, mais de 90% do tempo de seus conselhos havia sido gasto na análise retrospectiva de indicadores financeiros e em temas jurídicos ou operacionais do dia a dia.

Implicação # 2: Novos temas na pauta do Conselho, com ênfase no fator humano

É fundamental que os conselhos passem a discutir com a devida qualidade temas emergentes relacionados às mudanças tecnológicas, ambientais e sociais do Século XXI. Entre os tópicos a serem incluídos regularmente na pauta dos conselhos, se destacam: o propósito, valores e a cultura da organização; os estilos de liderança predominantes no dia a dia; a saúde mental e o engajamento dos colaboradores; a gestão do capital humano; a criação de um ambiente propício à motivação intrínseca e à inovação; os riscos disruptivos e cibernéticos; a gestão e a proteção dos dados; a inteligência artificial; e, a digitalização da economia e da sociedade.

Mais do que debates superficiais, é preciso dar concretude a esses temas com a criação de indicadores objetivos para seu acompanhamento contínuo. Tomemos, por exemplo, a questão da cultura ética. Trata-se de um tema-chave para administrar adequadamente os riscos éticos, reputacionais e de compliance da empresa, bem como para instaurar uma cultura de inovação e elevado engajamento. A cultura ética de uma empresa pode ser medida objetivamente de diversas maneiras, muito além da rotineira e extremamente limitada pesquisa de clima.

Essa mensuração inclui a análise de indicadores culturais de diferentes áreas, entrevistas estruturadas com executivos sobre os fatores e pressões que podem a levar à cegueira ética, pesquisas eletrônicas com colaboradores para avaliar o nível de convergência entre os sistemas formal e informal de valores da organização, conversas periódicas com stakeholders sobre as práticas da empresa e a análise dos comentários de colaboradores em websites especializados de avaliação de empresas. No vídeo abaixo, descrevo esses métodos em detalhe.

Cabe aos conselhos, portanto, dar a temas como a cultura ética sua devida relevância, passando a mensurá-los objetivamente e a monitorá-los regularmente.

Implicação # 3: Maior otimização do tempo do Conselho

Incluir novos temas em reuniões já abarrotadas de matérias é uma tarefa extremamente desafiadora. Para aprimorar a pauta e a produtividade das reuniões do conselho, é preciso trabalhar na otimização de seu tempo.

Isto significa analisar com rigor matemático onde o tempo das reuniões está sendo consumido. Em especial, é preciso refletir regularmente sobre as seguintes questões: como o conselho está gastando seu tempo? Como deveria estar gastando idealmente? O que deve ser feito para eliminar esta lacuna? Em consultorias recentes junto a conselhos de empresas de grande porte, por exemplo, constatamos que apenas 15% do tempo do órgão havia sido gasto em matérias deliberativas, enquanto os conselheiros acreditavam que ao menos 50% do tempo deveria ser alocado nessas matérias.

Pensar de maneira holística em todos os temas que o conselho precisa cobrir ao longo do ano também é fundamental. Isto permite criar um calendário anual de pautas com espaço para temas não urgentes, porém essenciais para o futuro da organização e que precisam ser trabalhados proativamente (e não reativamente).

Outra tarefa crítica é melhorar as atividades pré e pós-reuniões. No caso do pré-reunião, por exemplo, a qualidade e a produtividade das sessões tendem a ser diretamente proporcionais ao preparo dos conselheiros (enquanto a duração das reuniões tende a ser inversamente proporcional ao preparo prévio).

Funcionamento e cultura do Conselho

Implicação # 4: Atuação mais contínua, fluida e dinâmica, menos pontual, rígida e estática

Os conselhos geralmente atuam de maneira pontual e infrequente, com pouca comunicação de seus membros entre as reuniões. Tendo em vista a enorme velocidade das mudanças em curso e as diversas formas de interação possibilitadas pelas novas tecnologias, cada vez mais exige-se um engajamento contínuo dos conselheiros além das reuniões.

Este contato constante e em tempo real, por sua vez, possibilitará que as 8 a 12 reuniões típicas dos conselhos sejam dedicadas principalmente ao aprofundamento dos debates e ao contato pessoal necessário para construir o espírito de grupo.

Criar estruturas ad hoc dedicadas a temas relevantes ou urgentes é outra maneira de o conselho passar a ter uma atuação mais dinâmica. Por que não, por exemplo, criar comissões temporárias dedicadas a temas cada vez mais importantes, como o propósito e valores da organização, saúde mental dos colaboradores ou inteligência artificial? Isto permitiria ao conselho criar mais massa crítica em relação a questões que de maneira crescente farão parte de sua agenda.

Uma ressalva importante: um envolvimento mais contínuo dos conselheiros não significa atuar na gestão diária. A divisão de tarefas continua a ser essencial, incluindo a saudável segregação de responsabilidades. Em nossa experiência com dezenas de organizações, contatamos que fazer com que os papéis estabelecidos nos documentos corporativos sejam praticados no dia a dia da organização é muitas vezes o maior desafio para assegurar a boa governança para valer.

Implicação # 5: Mais debates, menos transmissão de informações

Pouco adiantará ter uma pauta adequada se as reuniões do conselho se caracterizarem mais pela exposição unidirecional de informações do que pela interação e debates. Para isso, é fundamental desenvolver uma cultura que incentive os conselheiros a manifestar suas eventuais divergências de maneira construtiva a fim de manter o coleguismo e o respeito mútuo.

Naturalmente, isto exige dos conselheiros um conjunto de qualidades associadas à inteligência emocional ainda pouco discutidas nos conselhos, como autocontrole, empatia, capacidade de ouvir, competência social e capacidade de fazer uma leitura correta da personalidade dos colegas do órgão. Em particular, é fundamental que os conselheiros adotem a chamada “escuta ativa” nas reuniões, demonstrando interesse genuíno por meio de contato visual, atenção plena para com os pares e boa linguagem corporal.

Outro aspecto cultural pouco observado é conseguir criar um ambiente emocionalmente positivo no qual as pessoas se sintam à vontade para esclarecer suas dúvidas, inclusive aquelas aparentemente simples e que poderiam expô-las a uma situação de vulnerabilidade.

O mínimo de tempo, portanto, deve ser gasto com apresentações meramente informativas da gestão carregadas por toneladas de slides e planilhas.

Implicação # 6: Mais ênfase no aprendizado continuado e avaliação individual

Em uma economia do conhecimento, se as pessoas e empresas não estão aprendendo diariamente, então elas já estão se tornando obsoletas.

Como resultado, é preciso criar uma agenda de desenvolvimento continuado para os conselheiros. Esta agenda deve ir além de assuntos técnicos. Ela deve contemplar o aprimoramento de habilidades socioemocionais fundamentais para o relacionamento interpessoal, como a escuta ativa, mediação e a comunicação não violenta.

Este tema remete ao imperativo de as empresas (enfim) avançarem no processo de avaliação da contribuição individual de cada conselheiro para o grupo. Trata-se de um tema absolutamente necessário em um ambiente externo de enorme complexidade com exigências cada vez maiores da sociedade em relação aos conselhos.

É preciso ir além, portanto, das tradicionais autoavaliações anuais do conselho baseadas em checklists padronizados sobre o desempenho coletivo do órgão (infelizmente muitas vezes respondidos sem a devida reflexão e posterior debate).

Cada vez mais, é preciso que cada conselheiro compreenda o que é esperado de sua atuação individual e seja avaliado regularmente em função dessas expectativas. (Disponibilizo um modelo para avaliação individual de conselheiros no livro Governança Corporativa: O Essencial para Líderes).

Implicação # 7: Mais transparência sobre as atividades e comunicação com stakeholders

O conselho tem sua credibilidade reforçada na medida em que os públicos externos percebem que o órgão vem cumprindo seu papel a contento. Isto é particularmente importante em momentos de crises ou problemas reputacionais, como os ocorridos com empresas brasileiras de referência nos últimos anos. Nesses episódios, a primeira pergunta que vem à tona é: onde estava o conselho dessa organização?

Logo, é necessário que o conselho proporcione elevada transparência sobre seu modus operandi para os acionistas e demais stakeholders-chave. Uma recomendação é elaborar anualmente um relatório nos moldes do governance report britânico para explicar como o conselho de administração vem agregando valor à organização (clique aqui para visualizar um exemplo desses relatórios).

Entre as questões a serem respondidas nesse documento, se destacam: como o conselho funcionou ao longo do ano? Quantas vezes se reuniu, quais foram os principais temas debatidos e assiduidade de seus membros? Qual é seu método de trabalho e como o órgão toma decisões? Como ele presta contas? Como se avalia? Como identifica os membros que não demonstram comportamentos alinhados aos valores da organização? O que é feito quando são identificados conselheiros que tem dedicado tempo insuficiente ou agregado pouco valor ao órgão? Como seus membros se atualizam? Como acompanham a empresa? Como se relacionam com os principais stakeholders da organização? Como são remunerados? Como os comitês do conselho têm funcionado? Como os novos conselheiros são selecionados? Como o conselho mitiga os conflitos de interesses?

Além de proporcionar elevada visibilidade sobre seu funcionamento, recomenda-se ao conselho estabelecer canais de comunicação com os principais stakeholders da organização a fim de capturar suas percepções e ouvir suas demandas de maneira estruturada.

Composição do Conselho

Implicação # 8: Equilíbrio entre expertise em temas emergentes e experiência setorial

Para discutir com a devida qualidade os temas emergentes do Século XXI, é preciso novas expertises no conselho voltadas principalmente para as questões humanas e tecnológicas.

Em particular, os conselhos deverão cada vez mais selecionar membros com expertises em temas como cultura organizacional, capital humano, liderança, tecnologias digitais, ciência de dados, segurança cibernética, questões sociais e ambientais.

Isso não significa, contudo, que as experiências tradicionalmente demandadas pelos conselhos em temas como finanças, direito, contabilidade e gestão executiva, se tornarão irrelevantes. O importante é achar o equilíbrio entre expertises em temas emergentes e experiência setorial, financeira e de liderança.

Sobretudo, é preciso que conselho avalie regularmente se possui o capital humano adequado para cumprir suas responsabilidades e agregar valor à organização.

Implicação # 9: Diversidade com inclusão e familiaridade

Além de novas expertises, os novos tempos exigem novas perspectivas no conselho. Para isso, é crucial ter elevada diversidade de pensamentos no órgão.

Muito se tem falado nos últimos anos sobre a necessidade de aumentar a diversidade de gênero, formações, experiências, idade, tempo no cargo, culturas, e raça nos conselhos a fim de ampliar sua riqueza de pensamentos e torná-lo mais sintonizado às demandas da sociedade.

Trata-se de um tema já presente nas discussões da maioria das empresas, com a maioria dos conselheiros manifestando apoio à ideia de elevar a pluralidade do órgão. A prática, contudo, é muito difícil: somos programados em termos evolutivos para privilegiar o que é similar, o que inclui nos cercar de pessoas parecidas em termos demográficos e de visão de mundo.

É preciso avançar da discussão infrequente e descompromissada sobre a questão da diversidade nos conselhos para a ação. Isto inclui a aprovação de iniciativas concretas, como novas práticas para a seleção de conselheiros e a adoção de metas objetivas.

Para os conselhos que já conseguiram elevar a diversidade de seus membros, vem a segunda etapa: criar um ambiente inclusivo no qual todas as vozes, principalmente as de conselheiros mais jovens, há menos tempo no cargo ou pertencentes a minorias, sejam igualmente ouvidas no órgão.

Neste tema, vale uma ressalva importante: é preciso avançar na diversidade e inclusão, porém sem perder a familiaridade entre os membros que proporciona coesão, confiança e espírito de grupo. Trata-se de um trade-off delicado, uma vez que o excesso de proximidade entre os conselheiros pode dificultar a manifestação de divergências ou questionamentos junto àqueles que não vêm contribuindo a contento.

Presidência do Conselho

Implicação # 10: De um enfoque cerebral e litúrgico para um enfoque humano e cultural

Iniciar um processo de mudança em hábitos arraigados no conselho requer liderança. O presidente do conselho é o maestro do órgão e tem um papel fundamental nesse processo.

Cabe a ele ou ela deixar de ter um papel eminentemente cerebral e litúrgico para se concentrar mais nos aspectos culturais e humanos do órgão. Isto significa liderar os conselheiros por meio da persuasão e exemplo para que o órgão tenha a cultura desejada, relacionamentos saudáveis, um ambiente emocionalmente positivo e foco no aprendizado e aprimoramento contínuos.

A questão cultural é fundamental: o conselho precisa ter uma cultura plenamente alinhada à cultura idealizada para a organização, de maneira a servir como referência para a gestão. Se o conselho deseja, por exemplo, que a organização tenha uma cultura de respeito às divergências, civilidade e transparência, então deve praticar esses comportamentos entre seus membros e na relação com os executivos.

Outra atribuição a ser cada vez mais exigida do presidente do conselho é a capacidade de estabelecer conversas francas com os conselheiros que vêm apresentando um desempenho aquém do esperado. Trata-se obviamente de uma questão extremamente delicada, postergada pela maioria dos conselhos devido à relação de amizade e muitas vezes até de deferência entre os pares do órgão (via de regra, pessoas de destaque que alcançaram sucesso profissional).

Para concluir:

O papel do conselho tem sido tradicionalmente associado à supervisão da gestão, definição da estratégia e monitoramento de sua execução. Em um mundo cada vez mais transparente e volátil, essas atribuições tendem a ter relevância menor.

De um lado, as novas tecnologias permitem supervisionar a gestão e os números em tempo real de diferentes maneiras. Do outro, a busca por prever e controlar o futuro que caracteriza os processos de planejamento estratégico tem agregado cada vez menos valor em mercados imprevisíveis.

Logo, para se manterem sintonizados com os novos tempos, os conselhos precisam evoluir em relação ao seu papel, funcionamento e composição. Como tenho enfatizado há anos, o foco no fator humano deverá ser cada vez mais preponderante, exigindo o aporte de novas competências e experiências pelos conselheiros.

Para agregar valor no Século XXI, os conselhos precisarão cada vez mais procurar assegurar que suas organizações sejam orientadas para um propósito maior, que as decisões diárias sejam pautadas por valores sólidos e que os executivos exibam um comportamento ético alinhado à cultura desejada.

Prof. Dr. Alexandre Di Miceli da Silveira é fundador da Direzione, uma consultoria de alta gestão dedicada a aportar conteúdo do estado da arte em ética empresarial, governança corporativa, cultura, liderança, diversidade, propósito e futuro do trabalho.

Ele é autor dos livros “The Virtuous Barrel: How to Transform Corporate Scandals into Good Businesses via Behavioral Ethics” “Ética Empresarial na Prática: Soluções para a Gestão e Governança no Século XXI”, “Governança corporativa: o Essencial para Líderes” e “Governança corporativa no Brasil e no Mundo: Teoria e Prática”.

O autor agradece à Profa. Dra. Angela Donaggio pelos valiosos comentários e sugestões.

[1] Zeitgeist: palavra alemã que representa o chamado “espírito do tempo”. Isto é as ideias, valores e crenças que caracterizam um determinado período histórico.

Alexandre Di Miceli
Alexandre Di Miceli

Written by Alexandre Di Miceli

Professional speaker, business thinker and founder of Virtuous Company, a top management consultancy on corporate governance, culture, leadership, and purpose.

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