A Empresa Resiliente: Chaves para o Sucesso no Mundo Pós COVID-19
Parte 3 de 3: A empresa com propósito
A questão mais importante para os líderes corporativos, neste momento e nos próximos anos, é criar organizações resilientes.
Isto é, empresas capazes de reagir rapidamente e não apenas sobreviver a situações críticas como a da COVID-19, mas sair delas melhor do que antes.
Para ser resiliente no século XXI, as empresas devem possuir três qualidades principais: aprendizado contínuo, ética e existência de um propósito maior além do resultado financeiro.
Nos dois primeiros artigos desta série, descrevi as características da empresa que aprende e da empresa ética. Agora, é a vez da empresa com propósito.
Propósito tornou-se um tema popular no mundo corporativo depois que algumas referências do mercado vieram a público falar sobre sua importância, como Larry Fink (CEO do BlackRock) em 2018, os 181 CEOs da Business Roundtable no ano passado e, mais recentemente, o Manifesto 2020 do Forum de Davos.
Isto levou a um certo “hype” ou promoção excessiva do tema, que virou um daqueles tópicos que as grandes empresas e os líderes corporativos não podem ignorar.
A realidade é que, apesar de muitas companhias falarem sobre propósito atualmente, pouquíssimas conseguiram tornar este tema algo concreto e prioritário no seu dia a dia.
O modismo não diminui a relevância do propósito.
Quando uma organização consegue inspirar e incutir em seus membros a percepção de que estão todos unidos em prol de uma causa nobre, ela passa a contar uma fonte colossal de energia, motivação e coesão.
Um senso de propósito autêntico também faz com que os stakeholders se sintam parte de uma causa justa e alinhada ao bem comum para a qual vale a pena contribuir.
Ter um propósito além do resultado financeiro é um diferencial ainda maior em períodos de crises e dificuldades. Nesses momentos, é fundamental ter convicção de que dias melhores virão. E a existência de uma causa maior é a chave para fazer com que os membros da organização demonstrem perseverança na construção do futuro idealizado.
As crises também são uma ótima oportunidade para as empresas deixarem um legado positivo duradouro junto aos seus stakeholders por meio do propósito. Um exemplo concreto ocorreu com a Meu Móvel de Madeira. Em junho de 2014, uma enchente atingiu a pequena cidade catarinense de Rio Negrinho, sede da empresa. Milhares de pessoas tiveram suas casas inundadas. Por sorte, a empresa não foi afetada diretamente.
Suas lideranças e colaboradores perceberam então que seu propósito de “Fazer da Sua Casa o Melhor Lugar do Mundo” não se referia apenas aos seus clientes. Eles se uniram em um mutirão para limpar dezenas de casas nos finais de semana.
O resultado foi positivo para todos. Não apenas a comunidade foi beneficiada, como a coesão sem precedentes entre os funcionários fez com que seu índice de satisfação dos clientes aumentasse nas semanas seguintes apesar de todo o período de dificuldades. Para seu CEO, o episódio demonstrou algo muito poderoso: que pessoas felizes com uma percepção mais ampla de seu papel fazem as coisas ainda melhor.
É importante destacar também o outro lado da moeda. Quando não há um senso de propósito, tem-se a chamada “empresa das horas boas”. Isto é, aquela organização que segura as pessoas apenas pelo bolso e que, na primeira adversidade, tende a desaparecer por não haver nada além do dinheiro que prenda seus membros.
Peter Drucker já havia percebido isso muito tempo atrás, ao afirmar que “quando não há um compromisso coletivo com um objetivo maior, não existe sequer uma empresa. O que existe é uma turba, um bando, um agrupamento.” Ou seja, uma aventura que pode dar certo por algum tempo.
Os períodos de adversidade, portanto, são o teste de fogo para as empresas demonstrarem a autenticidade de seu propósito e valores. Seu comportamento nessas situações será lembrado por seus stakeholders por muito tempo.
Para criar uma empresa genuinamente orientada para um propósito maior, são necessárias três iniciativas principais.
A primeira, e mais fundamental, é rever o próprio conceito de sucesso. Em vez de maximizar o resultado financeiro, é preciso que suas lideranças evoluam para um conceito de sucesso mais amplo que tem como objetivo maximizar o propósito da organização.
Isto não significa deixar de gerar valor para os acionistas. Pelo contrário. Alcançar um resultado financeiro satisfatório é condição essencial para que a empresa possa continuar a financiar sua causa e, assim, gerar um impacto ainda mais positivo para seus stakeholders.
A diferença, neste caso, é que auferir um retorno justo para os acionistas passa a ser visto como consequência, não como fim em si mesmo, da busca pela criação de valor compartilhado e sustentável para todos os stakeholders.
Orientar a empresa para um propósito maior é uma grande mudança de paradigma. A segunda resolução estrutural para que isso aconteça é mudar a forma como a alta gestão está habituada a administrar a organização.
Isto significa evoluir da pretensão de tentar prever e controlar o futuro (a tradicional abordagem do predict and control) para desenvolver a capacidade de sentir e responder continuamente ao ambiente externo utilizando o propósito da organização como norte para as decisões (o sense and respond).
É incrível que, em um século XXI tão volátil, acelerado e imprevisível, a maioria das empresas ainda gaste uma quantidade enorme de energia, tempo e recursos tentando prever e controlar o futuro. Em particular, por meio de processos detalhados de planejamento estratégico que muitas vezes mais parecem um verdadeiro ritual de “dança da chuva” coletiva.
Cada vez mais, as empresas precisam se concentrar na responsividade e na flexibilidade. Isso não significa não ter rumo. A direção a seguir, e os parâmetros do que fazer ou não diariamente, passam a ser determinados pelo propósito, valores e visão estratégica da organização.
Uma das consequências dos planos estratégicos rígidos e excessivamente detalhados é a prática do cascateamento de metas. Cada indivíduo recebe suas metas e passa a segui-las cegamente, mesmo quando o cenário externo já mudou completamente.
Este verdadeiro dogma é resultado da obsessão dos líderes corporativos em tentar controlar o incontrolável.
A solução corresponde à terceira iniciativa para criar uma empresa com propósito: eliminar grande parte da parafernália de indicadores — incluindo os confusos modelos de avaliação de desempenho individual — e passar a se concentrar em cascatear sentido e valores em vez de cascatear números.
Isto significa fazer com que as lideranças em todos os níveis se dediquem primordialmente a incutir diariamente um senso de propósito e sentido nos membros de suas equipes (o “por quê” de estarem ali) em vez de se concentrar em monitorar inúmeros indicadores estabelecidos unilateralmente (“o que” fazer).
Pode parecer radical, mas há várias evidências científicas e casos concretos de empresas que mostram que sistemas gerenciais extremamente complexos — que tem como objetivo controlar e padronizar tudo e todos — geram muito mais custos do que benefícios às organizações.
A figura abaixo descreve as três características de uma empresa com propósito.
A empresa resiliente: síntese
Na figura abaixo, resumo as três qualidades de uma empresa resiliente: a empresa que aprende, é ética e tem um propósito maior. A sobreposição entre os círculos mostra como esses conceitos são interconectados.
Para dar concretude a esses temas, é fundamental começar a mensurá-los. Há métricas para isso. É possível medir de maneira objetiva a segurança psicológica, a cultura ética, um estilo de liderança virtuoso e a orientação para um propósito maior, para citar alguns exemplos.
Executivos e conselheiros que têm como prioridade construir empresas culturalmente resilientes devem passar a medir e a monitorar continuamente como suas organizações estão em relação a essas qualidades.
Adicionalmente, mostro na figura a seguir um conjunto de elementos que servem como pano de fundo para as qualidades de uma empresa resiliente. Eles incluem temas como autonomia, confiança, respeito, diversidade e inclusão. Sem investir nesses fundamentos, não é possível construir organizações de excelência no século XXI.
Na parte inferior da figura, destaco a base de toda a concepção que descrevi ao longo desta série: a existência de uma premissa positiva sobre o ser humano nas principais lideranças da organização.
Se os líderes partirem do pressuposto que as pessoas são preguiçosas, burras e mal intencionadas, então será impossível construir empresas resilientes com as qualidades mencionadas.
O motivo? As lideranças criam sistemas e procedimentos que refletem sua visão sobre os outros. E, como as pessoas tendem a responder de acordo com o modo como são tratadas, isto leva a uma verdadeira profecia autorrealizável. Se as lideranças esperam o pior das pessoas, então provavelmente é isso que elas verão e terão.
Por outro lado, o inverso também é verdadeiro. Há muitos casos positivos de empresas que comprovam que as pessoas tendem a responder de modo extremamente positivo quando suas lideranças acreditam nelas e transmitem confiança, responsabilidade e humanidade.
Por isso é essencial partir de uma premissa positiva para despertar o que as pessoas têm de melhor.
Uma implicação crucial e conclusão
O modelo de resiliência empresarial que desenvolvi requer uma mudança de mentalidade de muitos líderes corporativos. Em vez de pensar em suas empresas como uma grande máquina, é preciso passar a vê-las como um sistema vivo.
A ideia da empresa como máquina é resultado de um pensamento mecanicista e linear típico da era industrial. Esta visão é voltada para a eficiência e o desempenho de curto prazo. Ela pode fazer algum sentido quando se enfrenta problemas simples em um ambiente estável. Em um ambiente dinâmico, complexo e imprevisível, ele não funciona.
É preciso evoluir para um pensamento sistêmico baseado na biologia. Um sistema vivo é incomparavelmente mais resiliente do que uma máquina. Nesta crise da COVID-19, por exemplo, a natureza tem dado um grande exemplo de resiliência.
Em poucos dias, os canais de Veneza voltaram a ter peixes, algas, e cisnes, enquanto várias metrópoles têm tido uma verdadeira invasão de animais selvagens, que incluem coiotes em São Francisco, pumas em Santiago e até leões da montanha na capital do Colorado.
A natureza é extremamente adaptável, flexível e sempre encontra uma maneira de se regenerar, de voltar a florescer em circunstâncias diferentes.
O mesmo vale para as empresas que aprendem continuamente, constroem relacionamentos saudáveis com seus públicos e perseguem um propósito maior: elas conseguem se adaptar às novas circunstâncias, se reinventar e voltar a prosperar.
Essas serão as empresas de excelência neste século XXI de choques sucessivos e transformações constantes.
Prof. Dr. Alexandre Di Miceli da Silveira é fundador da Virtuous Company, uma consultoria de alta gestão dedicada a aportar conteúdo integrado, original e de ponta em ética empresarial, governança corporativa, cultura, liderança, diversidade, propósito e futuro do trabalho.
Dr. Di Miceli é autor dos livros “The Virtuous Barrel: How to Transform Corporate Scandals into Good Businesses via Behavioral Ethics” “Ética Empresarial na Prática: Soluções para a Gestão e Governança no Século XXI”, “Governança corporativa: o Essencial para Líderes” e “Governança corporativa no Brasil e no Mundo: Teoria e Prática”.
O autor agradece à Profa. Dra. Angela Donaggio pelos valiosos comentários e sugestões.