A Empresa Resiliente: Chaves para o Sucesso no Mundo Pós COVID-19
Parte 2 de 3: A empresa ética
Uma organização resiliente é aquela capaz de crescer com as adversidades e ter sucesso em um mundo de incertezas.
Para ser resiliente no século XXI, uma empresa deve possuir três qualidades principais: aprendizado contínuo, ética e existência de um propósito maior além do resultado financeiro.
No primeiro texto desta série, descrevi as características da empresa que aprende. Agora, é a vez da empresa ética.
Muito poderia ser dito sobre um tema com pelo menos dois mil e quinhentos anos de debates. Para simplificar, a ética diz respeito a relacionamentos: Quais são os princípios, valores e normas de conduta que pautam nossa relação com as pessoas e nosso planeta? Vale tudo? Até onde vamos e não vamos? Nos delimitamos apenas pela lei?
Um comportamento ético é resultado da capacidade de refletirmos sobre as consequências de nossos atos ou omissões e de controlarmos nosso impulso egocêntrico em prol do interesse coletivo.
O mesmo raciocínio vale para as empresas.
Uma empresa ética considera continuamente os impactos de suas ações sobre seus stakeholders. Ela avalia o mérito de suas decisões não apenas sob as perspectivas comercial, jurídica e técnica, mas — principalmente — sob a perspectiva da ética.
“Esta é uma decisão ética?”, “Quais são as consequências do que estamos fazendo?” e “Esta é a coisa certa a fazer?” são perguntas feitas no dia a dia das empresas éticas.
A ética não se limita, contudo, à reflexão. Ela é sobretudo ação. Como já dizia Aristóteles, o objetivo da ética é praticar a virtude, não apenas saber o que é o certo a fazer.
Por isso, a ética empresarial refere-se primordialmente a comportamentos em vez de documentos.
Uma empresa ética está disposta a sacrificar ganhos de curto prazo para que seus stakeholders possam coexistir melhor ao longo do tempo. Ela compreende que a lei é o piso, não o teto, de suas ações.
Embora existam cada vez mais evidências científicas de que empresas mais éticas obtêm melhor desempenho sustentável, a verdade é que, em muitas situações específicas, vale a ideia do “no pain, no ethics” (“sem dor, sem ética”).
A principal marca de uma empresa ética é a capacidade de criar relacionamentos saudáveis do tipo ganha-ganha com todos os seus stakeholders. Seus líderes a veem como um sistema interdependente cuja força deriva da qualidade dos vínculos entre seus elementos.
A palavra “relacionamento” é fundamental. Ela embute o horizonte de longo prazo nas relações. Em um mundo corporativo extremamente transacional — em vez de relacional — construir relações sustentáveis é muito diferente de realizar uma série de transações ao longo do tempo.
Uma empresa ética, portanto, se preocupa genuinamente com o bem-estar de seus empregados, clientes, fornecedores e outros públicos. Ela os vê como um fim em si mesmo, não apenas como um meio para se fazer mais dinheiro.
É por isso que, nos momentos de dificuldades, as empresas éticas têm a boa vontade, a confiança e o apoio de seus stakeholders. Esses públicos procuram ajudá-las ativamente nessas circunstâncias por perceberem que a organização é justa e tem um papel importante nas suas vidas.
Há vários exemplos de empresas que só conseguiram sobreviver a períodos difíceis graças ao apoio decisivo de seus stakeholders. Entre eles, estão o caso da Whole Foods Market no início de suas atividades (quando sua única loja sofreu uma enchente que decretaria sua falência) e os da The Container Store e Barry-Wehmiller, que conseguiram emergir da crise global de 2008 com resultados recordes nos anos seguintes graças ao apoio de seus funcionários, clientes e fornecedores.
Naturalmente, o inverso também é verdadeiro. Em momentos de crise, as empresas éticas têm uma ótima oportunidade de ajudar os stakeholders mais frágeis de seu ecossistema. Isso deixará marcas positivas duradouras em sua reputação, credibilidade e vínculos de longo prazo.
Uma empresa ética possui três atributos principais: valores sólidos vivenciados diariamente, cultura ética e um estilo de liderança virtuoso em todos os escalões.
Comecemos pelos valores. Roy E. Disney, ex-presidente do conselho da Disney, afirmou em certa ocasião que “Não é difícil tomar decisões difíceis quando você sabe quais são os seus valores.” Ele acertou em cheio. Os valores servem exatamente para isso: identificar os princípios ou motivadores que devem nortear as escolhas e os comportamentos das pessoas no dia a dia.
Praticamente todas as empresas possuem um conjunto de valores nobres com referências a temas como integridade, honestidade, transparência, respeito a clientes e aos funcionários. Na maioria, contudo, há um oceano de distância entre os valores declarados ou aspiracionais (como gostariam de viver) e suas decisões e operações diárias (como vivem atualmente).
O valor supremo de muitas empresas, na prática, é apenas quanto dinheiro elas fazem. Quando isso acontece, cedo ou tarde ocorrerão graves problemas éticos.
Por outro lado, as empresas de fato orientadas por valores sólidos obtêm diversos benefícios tangíveis, como maior engajamento dos funcionários, atração de melhores talentos, maior inovação, menos gastos com controles e, inclusive, maior rentabilidade.
A segunda condição para uma empresa ser ética é, obviamente, ser capaz de instaurar uma cultura ética. Isto exige alinhar dois sistemas de valores.
O primeiro é o sistema formal ou tangível. Isto é, aquilo que está estabelecido nos documentos e procedimentos da organização, como seu código de conduta, declaração de missão e políticas para contratar, avaliar, promover e substituir as pessoas.
O segundo sistema é o informal ou intangível. Ele representa os sinais implícitos sobre o comportamento esperado das pessoas no dia a dia corporativo. Isso inclui as normas sociais da empresa, as regras não escritas para sobreviver e prosperar na organização, as estórias de corredor e as atitudes das pessoas de referência.
Quando os dois sistemas apontam para a mesma direção, a empresa faz com que as decisões e comportamentos éticos sejam algo natural, automático e habitual em seu dia a dia. Quando há discrepância significativa entre os dois, contudo, as regras formais se tornam irrelevantes e prevalecem as normas tácitas e os hábitos cotidianos.
E o que é necessário para construir uma cultura ética? Obviamente que há boa sobreposição com as qualidades da “empresa que aprende” mencionadas no artigo anterior, como segurança psicológica e motivação intrínseca.
Além desses elementos, é fundamental criar um ambiente caracterizado por elevada confiança, transparência, cuidado, empatia, emoções positivas e justiça organizacional (a percepção dos colaboradores de que a empresa é justa com eles).
A maioria das empresas reconhece e idealiza essas qualidades. Todavia, elas são muito difíceis de serem convertidas em realidade no cotidiano das organizações.
Vamos pegar o exemplo da confiança. Confiar significa se colocar voluntariamente em uma posição de vulnerabilidade com base em uma expectativa positiva de como a outra parte vai se comportar ou decidir.
Em um mundo transacional em que a competição é palavra de ordem, são raras as pessoas e empresas que aceitam se colocar em uma posição de vulnerabilidade. Ninguém quer baixar a guarda. Como resultado, as relações de confiança — verticalmente ou horizontalmente nas empresas e entre as empresas e seus stakeholders — não se desenvolvem.
É por isso que em momentos de crise e grandes mudanças como o atual, ter atitudes compatíveis com os valores declarados e praticar uma cultura com qualidades como a confiança, a transparência e o cuidado se torna ainda mais crítico e desafiador.
Para criar uma cultura ética é necessário, sobretudo, liderança. Em particular, de líderes virtuosos que se vejam como curadores de suas organizações e procurem entregá-las melhor do que as receberam.
Este é o terceiro atributo de uma empresa ética.
Em todos os escalões é preciso de líderes que procurem: 1) servir em vez de serem servidos; 2) desenvolver pessoas; e, 3) criar um ambiente inspirador, justo, inclusivo, seguro e emocionalmente positivo.
Esses líderes devem ser capazes de proporcionar aos membros de suas equipes duas categorias de experiencias: uma de universalidade e outra de singularidade.
A experiência da universalidade significa fazer com que as pessoas sintam estarem unidas na busca por algo maior e mais amplo que elas mesmas, que percebam que conjuntamente poderão chegar a realizações que nunca conseguiriam individualmente, e que compreendam diariamente a importância de seu trabalho e os impactos que causam na vida dos outros.
A experiência da singularidade, por sua vez, significa fazer com que cada pessoa perceba ser tratada como um ser humano único, com suas peculiaridades. Isso quer dizer: ser ouvido, ser reconhecido, ser confiável, ser alocado a tarefas alinhadas ao que fazem de melhor, e, principalmente, sentir que do outro lado há uma liderança que se preocupa genuinamente com elas como ser humano, muito além das questões profissionais.
Para exibir um estilo de liderança virtuoso, é preciso muito mais do que inteligência analítica, que a maioria dos gestores de algum modo têm. É preciso fundamentalmente de maturidade como ser humano e elevada inteligência emocional, moral e sistêmica.
Vale também destacar que esse estilo de liderança virtuosa exige diversas características tidas atualmente como “femininas”, tais como empatia, humanidade, cooperação, intuição, capacidade de escuta ativa e valorização de relacionamentos.
É desnecessário discorrer sobre a importância ainda maior das lideranças em períodos de crise. Nesses momentos, é preciso ser realista e transparente, e, ao mesmo tempo, otimista e humano.
Curiosamente, alguns dos países mais elogiados na condução da atual crise da COVID-19, como Alemanha, Taiwan, Nova Zelândia e Islândia, são liderados por mulheres. Por outro lado, esta crise, que não perdoa a incompetência, tem sido útil para desmascarar líderes bravateiros e com estilo tóxico que oferecem soluções simplórias para problemas complexos.
No próximo texto, concluirei esta série com um debate sobre a importância do propósito e recomendações práticas para altos executivos e demais lideranças empresariais.
Prof. Dr. Alexandre Di Miceli da Silveira é fundador da Direzione, uma consultoria de alta gestão dedicada a aportar conteúdo do estado da arte em ética empresarial, governança corporativa, cultura, liderança, diversidade, propósito e futuro do trabalho.
Dr. Di Miceli é autor dos livros “The Virtuous Barrel: How to Transform Corporate Scandals into Good Businesses via Behavioral Ethics” “Ética Empresarial na Prática: Soluções para a Gestão e Governança no Século XXI”, “Governança corporativa: o Essencial para Líderes” e “Governança corporativa no Brasil e no Mundo: Teoria e Prática”.
O autor agradece à Profa. Dra. Angela Donaggio pelos valiosos comentários e sugestões.